Rasteira no HIV
O inimigo é forte e rápido. Em poucas semanas um vírus da Aids (HIV) espalha milhares de cópias. O corpo reage mas, sem as drogas, o HIV ganha a batalha. No Brasil não falta munição para combatê-lo. “Fornecemos os remédios gratuitamente”, afirma o infectologista Pedro Chequer, diretor da Coordenação Nacional de Aids do Ministério da Saúde.
O governo atende 70 000 doentes – todos os que procuram ajuda, em um universo estimado em 400 000 infectados. A maioria ou não sabe que está contaminada ou não quer fazer o tratamento. Mesmo assim, segundo Chequer, os remédios fizeram o número de mortos cair pela metade desde 1997. A redução foi da ordem de 6 000 para 3 000, por ano.
Isso confirma a eficiência do coquetel, que impede a reprodução do vírus. É verdade que o número de infectados cresce: houve 7 564 novos casos no ano passado. E parte carrega micróbios resistentes às drogas. Mas o HIV está sendo derrotado. “Quem se trata não morre mais de Aids”, arrisca o infectologista Guido Levi, diretor do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.
A tática que derrubou o inimigo
Em 1996, a paciente Rosana, então com 34 anos, chegou ao consultório de Guido Levi com as defesas em frangalhos e um número enorme de vírus circulando no corpo. Estava magra e fraca. Em 1997 ela começou a ser tratada com uma combinação de três remédios (veja o infográfico ao lado). Desde então, Rosana ganhou peso e a quantidade de células CD4, uma das defensoras do organismo, aumentou muito, passando de apenas quinze por mililitro de sangue para 276. Hoje a paciente recebe mensalmente os medicamentos do Ministério da Saúde e mantém a Aids sob controle.
O milk-shake de poções que devolveu o ânimo a Rosana e ajuda milhares de outros cidadãos é composto de cerca de vinte drogas, divididas em dois grupos: os inibidores de transcriptase e de protease. Todas servem para bloquear a reprodução do vírus.
Os remédios têm pequenas diferenças químicas entre si e são mais eficientes se combinados dois a dois ou de três em três. O médico escolhe a fórmula adequada para cada paciente. Mas não toma a decisão sozinho. Ele segue recomendações feitas por um conselho dos principais especialistas em Aids do país.
Conselho de guerra
Desde 1996, eles se encontram no Ministério da Saúde, em Brasília, sempre que é preciso tomar medidas importantes. Foi o que aconteceu no dia 18 de maio. Dessa vez, conforme apurou a SUPER, a principal recomendação do conselho foi a de restringir o uso das inibidoras de protease, que, atualmente, fazem parte de mais de 60% dos tratamentos. Isso evitaria que o vírus se tornasse resistente a elas muito depressa. O remédio ficaria reservado apenas para os casos mais graves.
Enquanto os médicos tentam atrapalhar o contra-ataque do HIV, os laboratórios procuram reduzir um aspecto incômodo dos remédios. Os pacientes se queixam porque têm de engolir de quinze a vinte comprimidos por dia. “Muitos até deixam de tomar a dose completa”, conta o infectologista Davi Uip, da Universidade de São Paulo. Para reduzir o desconforto, versões recentes de algumas drogas estão vindo em concentração mais alta. Com isso, o número de comprimidos cai para somente dois ou três ao dia. O que nenhum esforço conseguiu, até hoje, foi eliminar os efeitos colaterais, que começam com dores de cabeça, náuseas e diarreia. Mais tarde vem o aumento excessivo de peso e dos níveis de colesterol. Mesmo assim, o sucesso do tratamento compensa, com folga, todos os inconvenientes.
Ressarce até as despesas que o governo faz com o coquetel. Cada paciente custa cerca de 1 000 reais por mês e já foram gastos 500 milhões de dólares para garantir o fornecimento deste ano. “Esse montante é, em parte, compensado pela economia com tratamento em hospitais. Desde que a terapia começou a ser financiada, foram evitadas mais de 47 000 internações”, diz Pedro Chequer, do Ministério da Saúde. “E nem estou levando em conta a profunda melhora no dia-a-dia dos pacientes”, completa.
Tão simples que se torna indestrutível
O HIV é feito de apenas nove genes e faz parte de um grupo de vírus, chamado retrovírus, muito primitivo. Para construir seus sucessores precisa sequestrar substâncias das células que invade. E, mesmo sendo tão rudimentar, consegue muitas vezes driblar as drogas ao sofrer mutações durante a sua replicação.
Esse é o principal motivo pelo qual não se pode ficar acomodado com a eficiência do coquetel que vem derrubando a Aids. Em 1998, a infectologista Susan Little, da Universidade da Califórnia, avaliou 69 pacientes em cinco cidades americanas e concluiu que 25% deles já tinham vírus imunes a pelo menos um dos medicamentos. Um estudo semelhante, com 100 pacientes contaminados há três anos, está sendo feito no Brasil pelo Instituto de Medicina Tropical, da Universidade de São Paulo, e pelo laboratório Bristol-Meyers.
“Os dados preliminares indicam que os portadores de vírus resistentes não são tantos quanto esperávamos”, diz o virologista Paolo Zanotto, coordenador do projeto. Mas ele adverte que, desde o início dos exames, podem ter surgido novos mutantes que não aparecem nesse resultado animador.
Por enquanto, há um empate entre as drogas e o HIV. O desafio é evitar que ele tome a dianteira. “Se isso acontecer, será um problema contê-lo”, diz Davi Uip. “Dificilmente surgirá algum medicamento mais forte nos próximos cinco anos”, explica o cientista.
Também não há perspectivas de destruição total do invasor. Primeiro porque, em algumas partes do mundo, na Ásia e na África, faltam recursos e organização para comprar e distribuir o coquetel à população. Com isso, a epidemia continua crescendo. De acordo com um relatório divulgado no mês passado pela Organização Mundial da Saúde, a Aids foi a doença infecciosa que mais matou em 1998: 2,28 milhões de vítimas, a maioria na África.
A salvo no refúgio
Em segundo lugar, mesmo onde não falta remédio, nunca é possível destruir todos os HIVs. O motivo é que os bandidos desenvolveram uma estratégia astuta de se esconder dentro do núcleo de algumas células de defesa, chamadas linfócitos-T. Nesse refúgio, não podem ser atingidos e conseguem sobreviver até sessenta anos, de acordo com uma avaliação feita na Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos.
O azar do HIV é que as pesquisas não param. Agora mesmo o infectologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos, procura um jeito de expulsar o vírus de sua toca. Sua arma é uma substância que o corpo produz para estimular as células a crescer, a interleucina-II. “Suspeito que, ao disparar o processo de desenvolvimento das células T, a interleucina possa arrancar o HIV do esconderijo”, diz o cientista. “Assim, ele pode finalmente ser destruído pelas drogas”, raciocina Fauci. Se estiver certo, isso pode levar à rendição incondicional do invasor.

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